Por Luciana Gurgel
A expressão soa medieval, mas voltou à moda na Europa: se a notícia não é boa, mate o mensageiro. A região vive uma onda de ataques a jornalistas perpetrados por cidadãos comuns e por grupos organizados na esteira da ressurgência da Covid-19, que desencadeou enorme frustração pela volta das medidas restritivas.
O “mate” não é exagero. Em protestos em Bolonha, manifestantes gritavam “jornalista, você é o primeiro da lista!“. As cenas dos ataques são impressionantes.
Em alguns países o ódio estende-se a profissionais de saúde. É o caso da Itália, onde manifestações de médicos nas redes sobre normas de proteção provocam reação de insatisfeitos e de negacionistas, com mensagens criticando ”a propaganda terrorista de sempre”.
E sucedem-se casos de agressão física e vandalismo. Em Rimini, 70 carros foram danificados no estacionamento de um hospital, num ataque aos que deixaram a condição de heróis e passaram a ser vistos como inimigos ao incentivarem cuidados que implicam em medidas impopulares.
Mas não é só na Itália que os jornalistas estão na mira. O International Press Institute, que monitora ameaças à liberdade de imprensa, registrou nas últimas semanas episódios em Áustria, Eslovênia e no Brasil (como no caso da repórter Bárbara Barbosa, da NSC em Florianópolis, ferida por populares durante uma reportagem).
Na Alemanha, a Repórteres Sem Fronteiras emitiu um apelo às autoridades para que garantam a segurança dos profissionais. O sindicato contabilizou 100 incidentes em protestos contra o lockdown somente em Berlim nos últimos seis meses.
Desinformação incita violência
Há fatores associados contribuindo para o quadro. Um deles é a resistência da desinformação relacionada à Covid-19. Grupos como o QAnon e conspiracionistas permanecem presentes em redes sociais e na internet.
É o caso do britânico David Icke, banido de Facebook, YouTube e Twitter por pregar insanidades como a de que o mundo é governado por alienígenas reptilianos e que a radiação das torres de 5G favoreceria a propagação do vírus, fazendo com que mais de 70 delas fossem vandalizadas no país.
Nesta quarta-feira (25/11), no entanto, uma busca no Google levava ao site de Icke, no qual seus vídeos − aqueles removidos do YouTube, que pertence ao mesmo Google − podiam ser assistidos. Na home, o destaque era um post sobre o mito de que o fundador da Microsoft usaria a vacina do coronavírus para implantar chips nas pessoas. Uma ajuda perigosa ao movimento antivacina.
O pedido “please share” mostra que Icke confia no compartilhamento para propagar suas teses. O site revela outro sinal do descontrole: expulso das plataformas convencionais, ele convida para segui-lo na Parler, rede social americana que virou paraíso dos extremistas devido à ausência de moderação.
Radicais aproveitam a pandemia
A onda de ódio reflete também a ascensão do autoritarismo. Líderes que desqualificam a ciência e se mostram intolerantes a imigrantes e minorias acabam alimentando grupos radicais. Eles se aproveitam da exasperação com a crise para arrebanhar adeptos entre os insatisfeitos com as medidas de isolamento. E para organizar agressões.
Segundo a RSF, é o que acontece na Alemanha. Segundo a entidade, “neonazistas e hooligans usam as manifestações para atacar brutalmente a mídia sob o disfarce de protesto de cidadãos”.
A tristeza é que, justamente quando são anunciados resultados promissores de três vacinas contra a Covid-19, a falta de controle sobre o discurso de ódio na rede e sobre os que propagam inverdades podem colocar a perder o avanço da ciência. Estudos como o da London School of Tropical Medicine and Hygiene mostram que a doença só estará sob controle se mais de 55% da população de cada país aceitarem ser imunizados.
Não bastassem os desafios que já tinha pela frente, o jornalismo ganhou mais um: a reconquista da confiança dessa parcela da população contaminada por idéias de radicais e de lunáticos. Será que vamos sentir saudades dos tempos em que ameaças à liberdade de imprensa vinham apenas de governos autoritários?
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